Bebê Rena: os problemas, vícios e tumores de Richard Gadd
Série da Netflix discute narcisismo e stalkers refletindo sobre humores. E mais: jukebox com novidades musicais da semana.
“Showing out, showing out, hit and run
Boy meets girl where the beat goes on
Stitched up tight, can't shake free
Love is the drug, got a hook on me”
Quando terminei o último episódio de Bebê Rena, minissérie de 7 partes da Netflix, fui ao Google e coloquei o nome do criador, Richard Gadd. Instantaneamente: “caramba, conseguiram um ator realmente muito parecido com ele”. Não é fanfic, acredite. Eu sabia que se tratava de uma história real, etc., etc., mas não do detalhe que me bugou: Gadd interpreta Donny, uma versão de si, recontando a história de como foi perseguido por uma mulher ao longo de meses.
Bebê Rena parte de uma premissa narrativa intrigante e de um artifício charmoso: somada à força do true crime, usa a técnica de ir abrindo uma caixa misteriosa dentro de outra até que, na última instância, descobrimos que não era necessariamente um “presente” o que estávamos recebendo. Exatamente como na comédia profissional que o próprio Richard Gadd tenta fazer funcionar em sua vida naquele período, a quebra de expectativas é um fator crucial.
Isso funciona bem não apenas pela história em si, com todo seu peso de realidade, mas por outros dois fatores. A atuação da inglesa Jessica Ghunning, como a stalker Martha, faz uso, na medida certa, do recurso da explosão psicótica para demonstrar as camadas da personagem. Como desde o início sabemos do que se trata e somos cúmplices dos pensamentos de Donny via voz off, poderíamos não ser surpreendidos por suas reações, mas somos. São descabidas, agigantadas pelo contexto. Já o comportamento e a psicologia de Donny está sempre nos causando a irritante sensação de "se esse cara fizesse terapia não tava fazendo besteira".
A série aposta muitas fichas na explicação à pergunta que surge bem nos primeiros minutos da série: por que Gadd levou 6 meses para denunciar a sua stalker à polícia? Para responder dilemas psicólogos complexos, então, há uma quebra de ritmo que demora mais do que o necessário, construindo esse rumo ali pelos episódios 4 e 5. O apontar para esse caminho, entretanto, mesmo sendo de uma honestidade notável, atrasa e prejudica uma conclusão que vem mais flácida e pouco segura de si.
Dun não é Gadd. Martha não é sua stalker (ver nota1). Ambos são ficcionalizações, com liberdades e interpretações não só de seu roteirista, mas de um universo de pessoas que produziram a série. Originalmente um espetáculo de comédia, entretanto, Bebê Rena busca consolidar seus dramas na ideia de realidade. Assim, por mais que soe redundante em suas ponderações finais, não deixa de tocar e provocar reflexões sobre temas relevantes.
“Martha empurra violentamente Dun a descobrir o seu pior, mas também o melhor depois de seu pior momento. Martha não é o tumor, mas o acidente que revela um diagnóstico prévio”.
São muitas as possibilidades e, a mais óbvia, claro, é a temática da necessidade de afirmação como parte da personalidade de toda uma geração. Este sentimento se desdobra de mil diferentes formas em nossa vida hiper conectada, ultra narcisista e tantos outros adjetivos que poderíamos traçar. Dun, entretanto, vive um desejo constante de se manter próximo àquele acaso que, não muito depois, permitiu rupturas diferentes em sua jornada como comediante: ele encontra graça no humor estilo fritada, no embate com sua “heckler” na plateia . Uma stalker convenientemente incômoda. Dun precisa dela não apenas para ser comediante, mas para viver, já que tudo ao redor dele é quebrado.
Donny, entretanto, não nos deixa como testemunhas de tudo aquilo: este seria o modo de contar essa história que nos faria mais satisfeitos com sua resolução. Vendo de fora, sem a “voz off” como narradora, não estaríamos dentro de sua mente, entendendo o mundo como ele entende, vendo o que ele vê, do jeito bagunçado como vê. Martha empurra violentamente Dun a descobrir o seu pior, mas também o melhor depois de seu pior momento. Martha não é o tumor, mas o acidente que revela um diagnóstico prévio.
O t-humor de Donny
Curiosamente, uma das origens da palavra humor vem da antiga teoria humoral da medicina (ver nota2). Ela é o pavimento para o que conheceríamos posteriormente como os Quatro Temperamentos (colérico, fleumático, sanguíneo e melancólico) e relaciona não só a ideia estado de espírito/personalidade, mas o equilíbrio corporal com a saúde. Os “humores” estariam relacionados a quatro líquidos centrais do corpo: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra (deixo para vocês tentarem acertar a relação). Fazer humor, curiosamente, costuma ser muito mais ligado a comportamentos vistos como melancólicos e sanguíneos.
Fazer ou consumir comédia, poderia se dizer, não é remédio, mas remedia; não é terapia, mas pode ser terapêutico; assim como também não é o preconceito em si, mas pode revelá-lo. O jogo da série, goste ou não, gira em torno dessa ideia humoral, visceral e junkie, algo influenciado pelo modo como a cultura pop inglesa retrata essa vida “wreck”: Bebê Rena, curiosamente, remete menos ao true crime e mais a obras como Transpotting e Skins. Quando entende que mesmo após um enorme abismo ele não consegue se encontrar na vida, Donny demora a perceber que, na verdade, aceitou com certa facilidade uma outra droga: a veneração de uma sociopata mais avassaladora que tudo que provou até ali. Para o amor de Martha ele não encontra cura.
Jukebox - novidades e dicas musicais da semana
Acompanho o canal de Chase Eagleson há um tempo, sempre trazendo bons covers musicais, mas aqui ele adicionou um ponto importante em sua história: gravou o clássico Comfortably Numb do Pink Floyd durante o recente eclipse total que rolou no Hemisfério Norte. Coisa bonita de ver e ouvir.
Uma trend musical do YouTube bastante interessante é a de produtores independentes tentando refazer com alguma exatidão hits clássicos da música. O canal AudioHaze decidiu fazer isso com “Bombtrack”, do Rage Against The Machine. Essa, porém, é a parte menos interessante do vídeo: toda sua primeira parte é uma entrevista com o produtor do álbum seminal da banda, falando e mostrando bastidores da maluquice que foi gravar o disco autointitulado de 1992.
Não é que seja novidade alguém tocar músicas famosas usando o Mario Paint, mas é inegável que fazer isso com Raça Negra ou o tema do Globo Rural não é algo que a gente vê todo dia.
A portuguesa MARO, que vem ao Brasil para turnê no segundo semestre, lançou recentemente um documentário que mostra a gravação de todas as canções do seu bonito disco Hortelã (álbum que falhei em não adicionar à minha lista de preferidos de 2023). É um registro bonito, intimista e que mostra que se pode fazer muito com pouco.
Entre algumas novidades e descobertas musicais dos últimos dias, vale o destaque para o rock dos duos The Blue Stones no álbum Pretty Monster de 2022 e os australianos Royal Otis com o lançamento PRATTS & PAIN. Graças aos virais da internet, acabei esbarrando na recomendação do disco DECIDE de Djo, projeto musical do ator Joe Keery (Stranger Things). É um som que passeia entre o synth, o new wave e também pelo dream pop. Tudo que gostei mais desses e outros discos está sempre na playlist de Descobertas e Favoritas de 2024 no Spotify.
Abraços,
Ricardo Oliveira
É bastante provável que Martha seja inspirada em Fiona Harvey, mulher que tem alardado ser perseguida e ameaçada (!) por acharem que ela é a stalker de Gadd. Fato é que, além de terem encontrado tweets dela interagindo com Gadd no período retratado na série, há similaridades com erros ortográficos e comportamentos preconceituosos. Gadd, no entanto, diz que não só alterou o nome como características e contextos sobre sua stalker para evitar que ela seja descoberta.
Esta relação entre humor e humoral ouvi pela primeira vez no podcast Coisa Que Não Edifica nem Destrói, do ótimo comediante português Ricardo Araújo Pereira. No episódio, aliás, fala-se bastante sobre Machado de Assis e seu Memórias Póstumas de Brás Cubas.