Popcafé #53: os Ventos de Queimada de André de Leones e a Armadilha de Shyamalan
A revistinha está de volta. E mais: Billie Eilish e Nirvana.
Lá no antigo outubro de 2022, publiquei a edição #52 da Popcafé. Foi a newsletter que me transportou de vez do mundo dos blogs para o Substack. A fase, porém, foi interrompida por uma decisão que tinha bastante a ver com a publicação do meu primeiro livro. Queria dedicar mais tempo a ele e, para isso, pausei todos os projetos que não levavam meu nome (parece meio burro, mas envolvia saúde também). De lá pra cá, migrei os conteúdos e os assinantes para este novo canal (que cresceu muito pouco de lá pra cá, mas recentemente calhou de receber vários nomes novos) e segui sem uma “marca”. Percebi, entretanto, que sentia falta do formato. Adoro a ideia de zines, revistas digitais e blogueiragens marotas. Decidi, então, que quando eu fizer uma edição mais caprichada, com resenhar e diferentes temas (como é o caso desta), vou voltar a chamar de Popcafé. Quando não, vai tranquilo como tem ido nos últimos dois anos. Obrigado a quem chegou recentemente e vamos lá. OBS.: os textos de hoje estão saturados de metáforas, para explicar as coisas (de fotografia a bolo no forno, vai entender). Pelo inconveniente excessivo, peço vossa compreensão.
Armadilha (Trap), 2024. M. Night Shyamalan
Armadilha é divertido, como se propõe ser. É um filme de serial killer “sem morte”, sem sangue, sem grandes tensões por parte de vítimas ou coisa assim. Uma obra de censura 14 anos, lançada no verão americano com um fator importante: a filha de Shayamalan é a segunda protagonista, estreando na atuação. E ninguém quer fazer um filme que tem a filha e as amigas dela não vão poder assistir, né? (não compartilho das críticas que diminuem o filme por conta da nepobaby, que fique claro, ainda que desgoste da atuação da moça)
O personagem de Josh Hartnett (esse sim, muito bem) é Cooper, um pai que recebeu a missão de ir com a filha, fã da tal cantora, para um show. Cooper, porém, acaba por descobrir que todo aquele evento é uma armadilha para pegar “O Açougueiro”, um assassino serial que já matou 12 pessoas e está sendo perseguido pelo FBI. Ele, claro, é o tal assassino, mas isso é o que menos importa.
Os dois primeiros terços do filme funcionam muito bem, com um ritmo hitchcockiano que me lembrou a sequência do teatro em O homem que sabia demais (1956). A graça, o que o torna divertido, é esse jogo de caça em lugar fechado. Cooper é hiperbólico em suas habilidades, quase um Ethan Hunt, e Shyamalan brinca conosco nesses exageros propositais. O que talvez lhe falte, claro, é botar os pés no chão quando mais precisamos, no terço final.
Por se tratar de uma história que também é sobre uma disputa midiática de atenção (assassino x FBI x cantora pop), Armadilha se desdobra numa premissa incrível, mas decide nos entregar uma resolução que exacerba e acaba por deixar o bolo tostar no forno. Seu saldo final é positivo, mas ainda dá para sentir o gostinho de queimado.
Todos os filmes que assisto eu registro no Letterboxd, eventualmente com textos ou comentários rápidos. Segue lá.
Vento de queimada (2024, Editora Record), André de Leones
“Qual o sentido de fechar os olhos no escuro?”
Ler Vento de queimada, romance mais recente de
, parece estar sempre nos colocando em uma posição de desfoque, ajuste de lentes e correção de abertura do obturador. A metáfora fotográfica é a única que tenho para explicar a imersão em um texto narrativo de discurso indireto livre em que, possivelmente, metade (ou quase isso) de um catatau de mais de 500 páginas, é formado por diálogos. Como o narrador também recorre a constantes elipses temporais, promovendo nossas imersões sem construções desnecessariamente explicativas, não raro estamos montando um quebra-cabeça. É um jogo em que sabemos qual a imagem que as peças formam, mas a caixa foi jogada fora e elas são tudo o que temos. Na caixa havia apenas um aviso: quando montar todas as peças, talvez se possa ver outras coisas além do esperado.O saboroso diferencial dessa elegante estrutura narrativa é que Vento de queimada não é um romance psicológico urbano de dramas familiares comuns. Esta é a história de uma assassina profissional no Centro-Oeste brasileiro dos anos 1980. É uma história sangrenta, explícita, escatológica.
Nos anos finais da ditadura militar, a graduada em história Isabel faz seu dinheiro matando gente por encomenda junto ao seu pai, que lhe ensinou o ofício. Vítima de um evento obscuro não muitos anos antes, a matadora convive com o mal que lhe cerca enquanto entende o mal que a habita. Não há, da parte dela ou do narrador, um olhar filtrado por ética religiosa ou moralista. Frequentemente Isabel deixa claro seu viés que remete ao porra-louquismo de Sganzerla e seu Bandido da Luz Vermelha, essa coisa meio Boca do Lixo, mas muito mais goiana que paulistana. E isso digo porque a história se divide entre os dois Estados, mas é essencialmente um bang-bang do Cerrado brasileiro. Mas para ficar na literatura, o mundo de Isabel que Leones nos apresenta, é um território pisado por personagens que poderiam estar em obras de Rubem Fonseca e Marçal Aquino. Aliás, fosse um livro do tempo que Beto Brant ainda dirigia filmes policiais, seria um casamento e tanto.
Isabel está sempre na companhia de Gordon, um americano que já vive no Brasil há anos e que para ela é uma mistura de guia experiente no mundo que decide imergir, mas também parceiro na cama, nas brisas, devastação de fígado e música boa. As conversas de Isabel e Gordon estão sempre numa fluidez que poderiam deixar o Tarantino early-days de orelha levantada. Um liquidificador de referências cinematográficas, literárias, políticas e, especialmente, musicais. Não à toa, decidi fazer, por não ter achado por aí, uma playlist com as canções que consegui identificar na obra. Muito punk rock, mas também fados portugueses e outras pérolas malucas:
Esses diálogos entre dois personagens-chave ajudam a definir todo o tom do livro. Tudo que vem fora desse universo tão íntimo está sempre revelando a ausência da mesma intimidade. Mesmo quando conversa com o pai, comparsa de trabalhos mercenários, não encontramos a mesma leveza, o humor cínico e falastrão sobre a vida.
Mas há psicológico e também com suas particularidades. Longos parágrafos de frases curtas intercaladas por repetições. Talvez não seja um estilo e ritmo que gere identificação imediata, mas não demorou para que eu percebesse que é assim que minha cabeça funciona em vários momentos da vida, especialmente os tensos: barulhenta e repetitiva. Frases que sempre retornam até que se alcance o silêncio. Não considero feito pequeno, mas admito a pessoalidade: tenho uma resistência considerável com narrativas psicologizadas demais, mas pautadas por uma poética que se sobrepõe à narrativa.
Vento de Queimada é barulhento, falastrão, pouco ortodoxo ou interessado em ganhar o badge de literatura brasileira engajante. O que é ótimo, claro. O mundo de balas e mortes de Isabel se cruza com o residual decadente, militarista e político do Brasil oitentista. Sua razão-de-ser enquanto obra não é para isso, mas é certamente sobre esse país:
“Mas será que as pessoas não desaprenderam a ler? Será que algum dia aprenderam? Talvez não haja sequer o que ler. Não há nada aqui. Nada sob. Nada oculto. Olhos estrangulados percorrendo linhas estranguladas. O país não está lá. Nas linhas, entrelinhas. Nas sombras, meio oculto. O país não está. Não há país nenhum. O país é um vazio. Conjunto vazio. Quando os milicos apearem, seremos deixados com esse vazio enorme, e não saberemos o que fazer com ele. Ou ficaremos naquela mísera faixa de areia, encurralados entre o paredão de água e o paredão rochoso, e começaremos a cavar um buraco na areia […]. Não saberemos o que fazer, assim como os milicos não souberam. Tomada a casa, descobriram que estava vazia e caindo aos pedaços. Condenada. Então, reunidos no porão, decidiram que, mesmo assim, não iriam embora”.
Nos vários momentos oníricos ou de divagações alucinantes, Vento de Queimada ensaia aproximações a um olhar esperançoso. Assim, a jornada de Isabel, a certa altura, passa a ser a tentativa de se afastar desse mundo — e o aprendizado com Gordon (que está a décadas nele) sobre a impossibilidade do feito. O trecho acima, porém, nos leva aos sentimetos de Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, e nos lembra que esta não é uma narrativa distópica (o ótimo Dentes negros, também de Leones, sim), ainda que pudesse ser. O absurdo brasileiro, porém, dita os versos de sua própria canção: um punk rock barulhento, cantado em português, com sotaque goiano, em um inferninho que tem tudo, menos alguém que preste.
Vale acompanhar a newsletter de aqui no Substack, sempre com textos e dicas (literárias e cinéfilas) afiadas.
Jukebox
Dia desses um amigo que tinha bastante resistência ao som de Billie Eilish admitiu que foi fisgado pelo novo álbum. O momento dessa descoberta não poderia ser mais oportuno, já que o ingrediente mais interessante do disco é a diminuição do eletrônico em favor de uma sonoridade elétrica. Parte dessa descoberta se deu devido às versões lançadas no “ao vivo no estúdio” da Amazon, que pode ser assistido abaixo.
A questão Billie Eilish, goste você ou não, é que ela é representante de uma quebra de paradigma importante na produção musical: ela faz a linha que costuma ser detestada pelo olhar tradicional da produção de vocais. Enquanto antigamente se valorizava (e se necessitava) que o cantor fizesse seu trabalho na menor quantidade possível de takes, a geração atual se beneficia do aspecto “infinito” do digital e do estúdio em casa. Assim, como se pode assistir nesta entrevista com David Letterman, Eilish mostra como ela chega a gravar centenas de takes apenas para algumas poucas palavras de uma canção.
Acontece que nem sempre esse compilado de takes é para “acertar”, mas sim para outro aspecto importante da produção de vocais em estúdio, que são as dobras e harmonizações. Nas dobras (algo antigo e feito muito antes do digital), a cantora está dando mais potência orgânica à sua própria voz, cantando a mesma coisa repetidas vezes e a mixagem sobrepõe essas camadas com volumes diferentes e efeitos de estéreo. Já na harmonização vocal, se pretende criar dobras, mas em notas diferentes, criando o efeito de backing vocals, coral ou a maluquice que se desejar. Isso é tão significativo na obra de Eilish que em seu novo disco, foram disponibilizadas as faixas isoladas dos vocais de todas as canções. Ouvir, por exemplo, “Wildflower” é perceber que o que achamos muitas vezes serem teclados e sintetizadores são, na verdade, a voz da cantora com diferentes equalizações e efeitos.
Toda essa digressão palestrosa é para enfatizar que mesmo com todo esse esforço, o valor atribuído às três backing vocals presentes no vídeo acima, continua sendo superior, por razões óbvias. Agora, o som de Eilish (e sua voz) está mais aberto e com menos compressões de masterização, mas isso também se abriu para a possibilidade de ter uma banda completa até mesmo com vocais. De Bad Guy para Birds of a Feather há um grande salto, mas entre as duas pontas está a mesma cantora — mais madura, mas ainda Billie Eilish.
Termino apontando que a prova do novo feeling ao redor do disco de Eilish, é esse cover absurdo da girl in red, que consegue ser ainda melhor que o original.
Vocês sabem que eu sou uma bitchezinha desses vídeos de “músicos ouvindo o artista X pela primeira vez e tirando a canção Y de ouvido”. A coisa aqui mexeu comigo diferente. Dessa vez, além de ser uma banda inteira, são jazzistas que nunca haviam ouvido Heart Shaped Box do Nirvana (exceto por um deles). O aspecto positivo da interpretação, entretanto, não está necessariamente na facilidade com que tiram a canção rapidamente — além de não ser necessariamente uma melodia difícil, eles são músicos profissionais. Fato admirável é a capacidade de reinterpretar a canção com prazer em meio à agilidade necessária. Basta dar o play para entender:
Por hoje é isso.
Um abraço e um café.
Ricardo Oliveira
Obrigado pela leitura! Eu tanbém fiz uma playlist com as músicas que "tocam" no livro: https://open.spotify.com/playlist/3q3eIf57Ps3Upk2v6kpKwi?si=nit18RVlSsm-DA6rCQ-vzg&pi=CbcJTfW2Q3Cwm. Foi a parte menos estressante e violenta do trabalho rs. Abraços.