Do luto aos Salmos: Sufjan Stevens canta a melancolia da perda com memórias e fé
E mais: Marcos Almeida regrava Lenine; Henry James e seu horror de incertezas; Top 5 aleatório da semana.
Depois de lançar dois singles do seu novo álbum, o cantor e compositor norte-americano Sufjan Stevens fez uma publicação em suas redes sociais: durante o mês de agosto ele acordou certo dia sem conseguir se mexer. Com braços e pernas dormentes, foi ao hospital para descobrir que estava com a Síndrome de Guillian-Barre, um distúrbio autoimune que ataca o sistema nervoso. É uma doença rara e atingiu o cantor de 48 anos e ao menos 10 álbuns autorais de estúdio lançados. A recuperação dos movimentos é reversível e Sufjan já está avançado nos tratamentos.
Acontece que essa não seria a única notícia melancólica que 2023 traria aos fãs: em 6 de outubro, dia do lançamento de Javelin, seu novo disco, o cantor fez um post dedicando a obra ao seu companheiro, Evans Richardson. Pela primeira de forma pública, o texto trata, não só, da orientação sexual de Stevens, como revela que Richardson faleceu em abril. Javelin, assim, seria dedicado a ele.
Eu já tinha escutado o álbum algumas vezes quando recebi a notícia. É mais uma obra de Sufjan mantendo o altíssimo nível que atingiu desde The Age of Adz (2010). Este talvez seja, inclusive, um álbum que soma a sonoridade e a personalidade presentes tanto no disco de 2010 como em sua obra-prima, Carrie & Lowell, de 2015. A faixa de abertura, “Goodbye Evergreen”, é essa sinopse perfeita: começa melancólica, ao piano, e termina maximalista, cheia de orquestrações, inserções eletrônicas e múltiplos backing vocals femininos (trazendo a grandiosidade que é tão característica da obra de Stevens) quanto seus vocais agudos e minimalistas ao violão folk. “Salve-me da envenenada dor” (verso da canção), entretanto, soa diferente ao se descobrir que este é um disco de luto.
Tudo se ressignifica: se antes “Will Anybody Ever Love Me?” parecia uma canção com um eu-lírico soturno em meio a uma melodia feliz, beirando a ironia, versos como “Take my suffering as I take my vow / Wash me now, anoint me with that golden glade" ganham novo sentido. Exatamente como em uma das mais belas e surpreendentes canções, com Stevens voltando a um tom confessional de sua já conhecida fé cristã: em “Everything That Rises”, ele clama como um salmista: “Jesus lift me up to a higher plane / Can you come around before I go insane?”.
É difícil sair ileso de um álbum de Sufjan, que certamente é um dos mais importantes artistas da música contemporânea. Tal qual Carrie & Lowell carregava um subtexto profundamente pessoal (especialmente a morte da mãe) e trazia canções perfeitas, como “Forth of July”, Javelin submete suas letras e melodias ao crivo da dor. Seu disco, seu gesto de abrir publicamente sua homossexualidade e sua postura, ao fim, também são atos políticos. Sufjan sempre demonstrou apoio público à comunidade LGBTQ+ e demonstrou interesse nas lutas enfrentadas pela comunidade nos EUA nos últimos anos.
É preciso dizer que Stevens pode até aparecer a seguir, revelando que todas as canções foram escritas antes da morte de seu parceiro. O que poderia ser doloroso, mas não surpreendente. Exatamente como grandes artistas, Sufjan faz canções com a capacidade preditiva de um profeta e a destreza de um gênio.
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Para relembrar os dois álbuns mais citados no texto, além de ouví-los, claro, vale a pena rever (1) a gravação do ao vivo de Carrie & Lowell e (2) esse show surtadíssimo no festival do Pitchfork (2016) que tem um pouco do apanhado de toda carreira, mas especialmente algumas canções (e o visual) do The Age of Adz.
Já faz uns três anos que o amigo Marcos Almeida me confidenciou que pretendia regravar algumas canções de outros compositores. Haveria um contexto específico: sua intenção era achar músicas do cancioneiro brasileiro que, como ele gosta de dizer, são “tecidas na esperança”. Não seria difícil de achar, mas sim de selecionar apenas algumas (ele mesmo tem uma playlist com 156 canções preferidas). Na época, Marcos me deu a honra de pitacar e sugerir alguns nomes — e Lenine foi um deles. Sugeri outra canção que gosto bastante, mas nesta quarta fui surpreendido pelo lançamento de uma versão para “Paciência”. Composta por Lenine e Dudu Falcão, esse clássico abre os trabalhos para o projeto Canções Pra Morar em Tempos Difíceis. Segundo Marcos, um novo single deve sair a cada 45 dias e ao final, formar um álbum que traz sua leitura de uma série de canções brasileiríssimas como seu som.
Cheguei um pouco desavisado à leitura tardia de A Volta do Parafuso, conto/novela de Henry James. Publicada pela primeira vez em 1898, esta história abre as portas para um novo olhar sobre “fantasmas” na literatura: como mostra muito bem este recente vídeo do Nerdwriter, James intencionalmente nos deixa incertos sobre o que de fato acontece na história de uma governanta contratada para cuidar de duas crianças em uma mansão no interior da Inglaterra. Ao começar a conviver, ela se encanta com a simpatia e a beleza de Miles e Flora, mas também se assusta com aparições fantasmagóricas. Os fantasmas teriam a ver com o passado dos dois pequenos e, na visão da governanta, eles também os veem, mas escondem. Contado na primeira pessoa, somos levados a esse impasse: os fantasmas são “reais” ou ilusões de uma narradora que perdeu a sanidade por algum motivo alheio à narrativa? Fato é que exatamente essa construção de suspense e mistério, sustentada na constante incerteza, é o melhor da obra. Essa dúvida, inclusive, passa o tempo todo pela linguagem: usando uma série de frases de duplo sentido, James parece sempre estar insinuando situações sexuais e potencialmente abusivas entre as personagens (subtextos que explicariam o “porquê de tudo”). Mas por que desavisado? Bom, porque eu já conhecia a história: há alguns poucos anos eu assisti ao filme Os Inocentes, de 1961, que é a mais consagrada adaptação do texto de James. Acontece que, por alguma razão, eu deixei passar essa informação e, quando comecei a ler o livro, tudo estava ali. São obras perfeitamente complementares e imperdíveis.
*A edição da L&PM conta com prefácio do tradutor e está disponível no Kindle Unlimited (onde li); o filme de 1961 está em ótima qualidade e com legendas no YouTube.
* Uma das adaptações mais recentes da obra é a minissérie da Netflix A Maldição da Mansão Bly. Com ainda mais liberdade, uma versão inspirada no clima do texto, é o também clássico Os Outros, filme de 2001 de Alejandro Amanébar, disponível no Prime Video.
Top 5 aleatório da semana
1. Depois de liberar vários trechos de sua turnê na Europa, o britânico Jacob Collier publicou nesta quarta a íntegra do seu show em Lisboa, Portugal.
2. A editora O Grifo acabou de lançar a campanha de financiamento coletivo do segundo volume de “O Novo Horror”, sua coletânea de contos do gênero. Com 24 escritores de todo Brasil, a obra promete um apanhado das novas vozes da literatura insólita nacional. Estou produzindo uma série de cartazes especiais para cada conto, publicados gradativamente no Instagram da editora.
3. Meu filho de 2 anos ama “As It Was” de Harry Styles. É um pouco por culpa do pai, mas também porque ela toca na Mix FM a cada meia-hora. Por conta disso, ando colecionando versões da música: uma bem boa pra relaxar do canal Stories; outra de Jorja Smith para tocar no jantar com os amigos; e essa que está meio atrapalhada, mas tem seu valor, do Arcade Fire. Claro que nenhuma delas supera toda a grandiosidade cringe da versão de Supla.
4. Aproveitando o “clima” de Halloween, alguns títulos de horror que entraram nas plataformas e merecem destaque: a Mubi trouxe o clássico A Bruxa de Blair (também no Prime) e Possuídos, um dos últimos filmes de William Friedkin (e que não tem nada a ver com possessão, mas com ficar preso num quarto e entrar em paranoia). Na Star+ a excelente pedida é Ninguém Vai te Salvar, filme de invasão alienígena com uma pegada completamente diferente do habitual. Na Netflix o legal é assistir A Queda da Casa de Usher, que eu ainda não vi, mas é série de Mike Flanagan adaptando Allan Poe, né. Por fim, na Globoplay/Telecine, o último Shyamalan, Batem à Porta, está por lá (revi e segue ótimo), assim como o maluco-insano-sem-sentido-mas-imperdível Mandy — mas esse eu realmente só recomendo para quem está disposto a coisas com Nicolas Cage e sem pé nem cabeça.
5. Aliás, falando em assombrações, mas não em horror, o ótimo documentário de Kléber Mendonça Filho, Retratos Fantasmas, já está disponível para aluguel nas plataformas de VOD, como YouTube, Prime, AppleTV e GooglePlay. Para quem não viu nos cinemas, vale a pena demais.
Abraços,
Ricardo Oliveira