Propriedade, um horror pernambucano tensionado demais por seu discurso
E mais: jukebox com dicas musicais para alegrar (ou não) sua semana.
Um latifundiário que vive no Recife leva a esposa para a fazenda para passar um tempo e tentar se livrar do trauma da violência urbana. Ele celebra ter colocado blindagem especial no carro para a esposa se sentir segura. Chegando no interior, encontram os trabalhadores em motim ao descobrirem que o lugar seria fechado para virar um hotel. Uma crise violenta se instaura e a mulher encontra refúgio apenas no SUV blindado que a levou até ali.
Enquanto proposta narrativa, política e de gênero, Propriedade (Daniel Bandeira, 2022, disponível na Netflix) desenvolve com certa segurança o que deseja: um suspense violento sobre luta de classes, escravidão e capitalismo tardio. A própria sugestão de uma constante inversão de papéis de vítima e algoz, nos colocando em diferentes posições ao longo do filme, é por si só seu maior feito: o que poderia se dizer de um filme que nos faz entender a crueza de torcer para o opressor se salvar, já que é tanto alguém com quem empatizamos de início como alguém também oprimido? Ora, muito maiores são as dores dos seus empregados em condições de escravidão. Mas se estas vítimas, mais do que em uma insurreição violenta, chegam a assumir sadismo, torcemos por elas ou enxergamos o que fazem como uma consequência inevitável?
Se isso é o que mais me agrada em Propriedade, em meio a tudo isso há também atropelos narrativos e de atuação que comprometem tal esforço. Ainda que a maior parte dos relatos e decisões de personagens sempre soe perfeitamente crível, muitas das cenas de diálogos soam sem ritmo, sempre com falas e edição parecendo estar no ponto errado, em qualquer um dos lados de narrativa, seja no eixo dos donos ou dos trabalhadores.
No fim, ainda me resta o questionamento que considero mais vital e que desde os primeiros minutos na fazenda, sempre me incomoda: quando o discurso e a sua intenção chama atenção demais para si a cada nova cena, constantemente nos lembrando o óbvio, "ei, este é um filme sobre escravidão moderna! ei, não esqueça que na luta de classes vai ter sangue!" não é o caso de um didatismo excessivo?
Penso aqui exatamente sobre a flutuação discursiva do conterrâneo e contemporâneo de Daniel Bandeira, Kléber Mendonça Filho: seu O Som ao Redor tinha duas cenas emblemáticas que representavam dois sentimentos diferentes, mas bastante conectados: em uma cena de sonho, o quintal da casa da personagem de Maeve começa a ser invadido por um sem fim de meninos negros. Noutra, o rapaz protagonista está tomando o banho de cachoeira (na fazenda da família) e de repente se vê banhado por sangue. Uma representa o medo da violência da cidade, outra representa uma de suas origens. O que se quer dizer, está dito ali.
Em Bacurau, entretanto, Mendonça torna-se mais expositivo (e menos interessante) em seus motivos, como quando coloca vilões dialogando entre si sobre quem é mais branco ou quando o povo de Bacurau se organiza de forma muito sistemática para sua defesa. O mesmo acontece na transição de Jordan Peele entre Corra! e Nós: se neste primeiro filme há o suficiente explicitado (para mim, “sobra” em poucos momentos, para alguns, sobra o tempo todo) no seu segundo longa o discurso parece tomar conta da própria narrativa e estamos em uma aula de história com recursos criativos e não em um filme.
Todo esse processo me faz pensar sobre a importância da sutileza narrativa como um artefato importante por si só. Ainda que estejamos em mundo cansado o suficiente de um capitalismo tardio que continua massacrante, ainda que a arte (e o cinema) seja uma das melhores formas de refletir e provocar esse mundo, sua beleza e potência residem sempre e muito mais no não-dito.
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Sobre essa discussão de obras que tratam de temas “urgentes” e “importantes”, acho válido trazer essa reflexão ácida do colega em sua ótima newsletter.
Jukebox - novidades e dicas musicais
1. The Black Keys, depois de tanto tempo sem lançar um disco realmente bom, voltou forte neste Ohio Players. Vale vê-los ao vivo aqui.
2. The Bleachers, do produtor Jack Antonoff, soltou um disco bonito, onde as melhores canções, como sempre, são as de BPM mais acelerado. O álbum leva o nome da banda, mesmo não sendo sua estreia.
3. O galês Ali John Meredith-Lacey, mais conhecido como Novo Amor, mantém o espírito folk-experimental que o tornou conhecido em Collapse List, mas investe em canções puxando até para um soft rock.
4. O melhor algoritmo da Internet, o do YouTube, me recomendou uma banda filipina chamada Sandwich tocando uma música chamada “Morena” (aliás, o som no maior clima Black Keys). Eu cliquei, claro, e não me arrependi. Aliás, outro som asiático que me impressionou foi R&B de Fujii Kaze no Tiny Desk Japan.
5. Tudo que vou descobrindo de sons novos ou favoritando dos discos ouço durante a semana, fica salvo na minha playlist Descobertas e Favoritas 2024 no Spotify.
Quem chegou ao Substack foi o amigo
, cronista e romancista que nos empresta seu olhar e suas memórias agora por aqui. Assinem.Um abraço,
Ricardo Oliveira
Obrigado pela menção!